Juíza considerou que a União não pode realizar o leilão da concessão até que haja um plano efetivo de mitigação de danos aos povos indígenas.
Na imagem, protesto em agosto de 2020 dos Kayapó Mekragnotire, que fecharam a BR-163 (Foto cedida por Tommaso Protti)
Por Karla do Val e Luiza Medrado, da Amazônia Real
Cuiabá (MT) – A Justiça Federal do Pará impôs uma derrota ao governo Bolsonaro ao determinar a suspensão do processo de concessão da BR-163 (Cuiabá-Santarém). Em decisão liminar, a juíza Maria Carolina Valente do Carmo, da Vara Federal Cível e Criminal de Altamira, no Pará, acatou os argumentos do Ministério Público Federal (MPF), que em ação civil pública alegou descumprimento de decisão judicial anterior pelo Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (Dnit) e pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
Sobre a mesma decisão, na quinta-feira (1/7), a juíza impôs multa de 40 milhões de reais à União e aos órgãos federais Dnit, Ibama e Funai em caso de descumprimento das obrigações referentes à mitigação dos impactos negativos da obra de pavimentação da BR-163, incluindo a preservação das terras indígenas. O leilão da concessão estava marcado para ocorrer em 8 de julho, mas uma nova data só será marcada após o governo apresentar um levantamento dos impactos da obra em comunidades indígenas.
Em liminar de 2020, a Justiça Federal determinou que o Dnit apresentasse em 15 dias o Plano Básico Ambiental (PBA-CI) e que nele contivesse medidas para mitigar o impacto da pavimentação da BR-163 sobre os povos Panará e Kayapó Mekragnoti. A decisão judicial também obrigava que a Funai e o Dnit não interrompessem as ações de mitigação nas Terras Indígenas Mekragnotire, Panará e Baú, vítimas da extração de madeira nativa, do desmatamento e do garimpo de ouro, que polui os rios com mercúrio. Já o Ibama havia sido proibido de emitir licença de operação definitiva da BR-163.
Na sentença de 30 de junho, a juíza Valente do Carmo explicita que há “uma intenção manifesta do Dnit em descumprir a determinação judicial”, que é a de elaborar corretamente o PBA-CI, com base na matriz de impactos do Estudo e Impacto Ambiental (EIA). A magistrada afirmou ainda que a Funai tem se negado a elaborar o PBA junto das associações indígenas interessadas.
‘Governo viola a lei e nossos direitos’
O Instituto Kabu e a Associação Indígena Iakiô Panará ingressaram no polo ativo da ação civil pública, movida pelo Ministério Público Federal do Pará. Em agosto, lideranças Kayapó fecharam a BR-163 por vários dias, provocando engarrafamentos de até três quilômetros. Eles reivindicavam a participação dos povos indígenas na elaboração do PBA-CI, uma vez que a Funai os excluiu como parte interessada, e o ressarcimento pecuniário dos danos causados às etnias pelo empreendimento. Os indígenas alertavam, ainda, para novas violações às suas terras que poderiam sofrer com o desenvolvimento da Ferrogrão, ferrovia que servirá de escoamento para a produção do centro oeste paraense. Os Kayapó não se opõem à ferrovia, mas querem ser consultados e ter a garantia de que os impactos sejam mitigados, uma vez que ela passará a 50 quilômetros da reserva indígena Baú.
“O próprio governo, por meio da Funai e do Dnit, está violando a lei e afetando nossos direitos. Há tempos deveriam ter resolvido esses problemas. No bloqueio da BR-163, o presidente da Funai [Marcelo Augusto Xavier da Silva] entrou com processo contra mim, como se eu estivesse sozinho resolvendo e articulando aquele movimento. O bloqueio foi uma decisão das lideranças”, disse Doto Takak-Ire, do Instituto Kabu, à Amazônia Real.
Doto foi uma das lideranças que participaram do protesto em agosto, em pleno auge da pandemia. Eles cobravam compensação ambiental de impactos em seus territórios, a renovação do PBA e a liberação dos recursos emergenciais de combate à pandemia do novo coronavírus.
A construção da BR-163 começou nos 1970 e sempre foi um foco de conflito e disputa de direitos envolvidos, enquanto as práticas ilegais avançavam sem controle sobre a última região ainda preservada da Amazônia Oriental. Mas a fronteira agrícola já se alastra na direção norte, seguindo o traçado da BR-163, principal corredor de escoamento da safra de grãos ali produzida, soja à frente, para o Mato Grosso.
Mitigação x autonomia financeira
A decisão judicial inclui obrigações também para o Ibama e a Funai. A juíza mantém a proibição do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis de conceder a licença ambiental sem que haja a regularização do Componente Indígena do PBA. É nessa parte do plano que se define quais serão as ações de mitigação para os impactos da rodovia sobre as TIs.
Quanto à Funai, a decisão de 30 de junho impôs “a célere avaliação técnica do documento mediante equipe de indigenistas especializados com experiência no processo”. A juíza refutou a tese da Funai de que, depois de 10 anos de execução do PBA-CI, o Instituto Kabu não demonstra capacidade de manter sua “autonomia financeira”. Valente do Carmo lembrou que um processo de licenciamento ambiental não tem essa finalidade, mas tão somente “mitigar e compensar os impactos advindos do empreendimento”.
Os dois órgãos federais, Dnit e Funai, conforme determina a decisão judicial, devem apresentar, no prazo de 5 (cinco) dias, “garantia de que não haverá descontinuidade na execução das ações em curso, até que o PBA-CI seja repactuado e entre efetivamente em execução, bem como garantir condições para a manutenção das atividades do Instituto Kabu”.
Multa de 40 milhões de reais
A magistrada deu ainda prazo de 48 horas para que a União inclua no edital de concessão da rodovia a previsão de que a vencedora do leilão se torne responsável pela mitigação dos impactos negativos da obra junto às comunidades indígenas. E estipulou a multa de 40 milhões ao governo federal em caso de descumprimento.
Apesar de representar uma vitória para os povos indígenas, o vice-presidente do Instituto Kabu, Mydjere Kayapó, afirmou que “esses 40 milhões de reais são um troco, comparados aos danos socioambientais que nossos povos têm sofrido. E, até agora, nada desse troco entrou na nossa conta”, afirmou.
O Dnit informou, por meio da Assessoria de Imprensa, que irá recorrer das decisões judiciais. O Ibama informou que ainda não foi notificado da decisão. Procurada, a Funai não respondeu à reportagem até o fechamento desta publicação.